Falta do uso do cinto pode ter contribuído para mais mortes no ônibus dos fiéis (9 mortos)
6 de outubro de 2023

A tragédia ocorrida na tarde desse últmo domingo (1º/10), no km 180+300 da Rodovia Deputado Cunha Bueno (SP-253), em Guatapará (SP), poderia ter sido menos grave se todos os passageiros estivessem usando o cinto de segurança.

No tombamento do coletivo da Transportadora Petittomorreram 8 pessoas no local e outra faleceu poucas horas depois. Pelo menos 15 pessoas ficaram feridas no sinistro. Pelas informações iniciais, a maioria dos passageiros não fazia uso do cinto de segurança.

Ao observar que a carroceria do veículo não sofreu grandes danos, é possível estimar que o número de vítimas teria sido menor, apenas com o uso do cinto de segurança por todos os ocupantes. Evidente que a falta do uso do cinto não contribuiu para o tombamento, apenas pode ter aumentado a letalidade e gravidade dos ferimentos. Inclusive o Estradas apurou multas por excesso de velocidade aplicadas ao mesmo veículo. (Foto de Thiago dos Santos e registro do DER-SP de 92km/h em trecho de 80 km/h)

 

Esse é o entendimento do perito em sinistros (acidentes) de trânsito, Rodrigo Kleinubing. Ele explica que corpos soltos dentro do coletivo podem ser projetados totalmente ou parcialmente para fora do mesmo, aumentando a letalidade. Sem contar os casos em que a carroceria cai sobre as vítimas projetadas, causando mortes ou mutilações.

Ele recorda ainda que lesões graves e até óbitos podem ser causados pelos próprios passageiros. “Quando um passageiro está no banco de trás sem cinto, numa simples freada, seu corpo pode ser projetado dentro do veículo, causando lesões graves e até óbito de outros passageiros, inclusive os que estão com o cinto afivelado.”

Ônibus dos fiéis oferecia cinto de segurança

Até o momento, o Estradas.com.br pôde apurar que o coletivo, fabricado em 2010, oferecia esse equipamento de segurança, obrigatório nos ônibus rodoviários fabricados a partir de 1999. Embora os motoristas normalmente orientem os passageiros a afivelarem o cinto, a maioria não utiliza o equipamento.

“Nós realizamos a primeira pesquisa sobre o uso do cinto de segurança nos ônibus há 20 anos. Nossa proposta na época foi que os passageiros pudessem ser multados pela falta do uso do equipamento. Não é possível responsabilizar apenas o motorista do ônibus. Na época, a média de uso do cinto era de 3%, atualmente não chega a 20% nos ônibus de linha. Nas excursões, é ainda mais baixo”, esclarece Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas.

Polícia Rodoviária Federal confirmou a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança, em todo o território nacional, para condutor e passageiros de ônibus, conforme previsto no artigo 65 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O não uso do equipamento de segurança, quando disponível, é uma infração de natureza grave, punida com cinco pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

Os passageiros, ao contrário do que defende o Estradas.com.br, não são punidos. Apenas o motorista do ônibus pode ser multado.

O que dizem os médicos sobre a importância do equipamento

Estradas.com.br consultou alguns dos maiores especialistas do país sobre o tema para entender melhor os riscos da falta do uso do equipamento que podem explicar tantas mortes no ônibus de romeiros, como o de torcedores do Corinthians e tantos outros.

Marcos Musafir, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Ortopedia (SBOT) e Medical Officer na Organização Mundial da Saúde no Departamento de Violências e Traumas para implantação de políticas públicas de trauma global entre (2008-2009) em Genebra (Suíça), e fundador de entidade de vítimas, ao ser questionado sobre a importância do uso do cinto nos ônibus rodoviários, esclareceu:

“São os mais importantes, necessários e obrigatórios itens de segurança para os usuários, assim como em aviões e carros, tanto para o motorista quanto para todos os passageiros. O objetivo do uso do cinto por cada passageiro se comprova pela biomecânica do impacto, ou seja, evitar que, caso ocorra freada brusca, colisão ou outro sinistro, este fique solto no ônibus e sofra lesões na cabeça, tórax, membros ou bacia, e ainda evitar que seja ejetado, pois esses traumas poderão comprometer sua mobilidade, funções ou até sua vida, e são evitáveis com este civilizado gesto, evitando inclusive a superlotação dos hospitais e altos custos para a saúde. Destaco estudos internacionais onde os autores comprovaram que a utilização do cinto de segurança durante a viagem reduziu em 70% o risco de lesões e em 50% a probabilidade de morte.”

Alysson Coimbra, Médico Especialista em Trânsito, confirma as observações do Dr. Marcos Musafir e acrescenta que é comum nos sinistros (acidentes) de ônibus o chamado efeito boliche. “Você observa que os corpos sem cinto são projetados nos bancos à frente, causando lesões graves e até morte, seja nos passageiros sem cinto como nos que estão com ele afivelado. Por isso, você vê as poltronas quebradas e as pessoas agrupadas num determinado local. Isso acontece porque, devido à velocidade, o peso da vítima é multiplicado e pode representar uma força de pelo menos 1,5 tonelada sobre outros passageiros, bancos e outras partes do veículo.”

ANTT tolera viagens que obrigam passageiros a retirarem o cinto de segurança

Durante a Semana Nacional de Trânsito, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) organizou o evento “Rodovias pela Vida”, com transmissão no canal da Agência. Na ocasião, o Superintendente de Fiscalização na ANTT, Felipe Ricardo da Costa Freitas, enfatizou a importância do uso do cinto de segurança nos ônibus. “Nesta semana de 2023, expandimos a campanha Vai de Cinto porque ele consegue diminuir até 50% os óbitos e 70% das lesões graves (visível no vídeo a partir de 1h26:00).”

Em função da colocação do responsável pela fiscalização, o Estradas.com.br solicitou à ANTT, através da assessoria de imprensa, que explicasse como é possível pedir aos passageiros que usem o cinto o tempo todo quando a própria Agência autoriza viagens sem parada com seis ou mais horas de direção sem parada e não há como os passageiros deixarem de levantar para fazer uso do toalete em trajetos tão longos. A ANTT nada respondeu até o fechamento desta matéria.

Mas existem outros riscos para a saúde dos próprios passageiros quando não podem levantar e circular com segurança após duas ou três horas dentro do veículo.

O dr. Marcos Musafir esclarece didaticamente o tema e transcrevemos na íntegra sua resposta:

  • Considerando que os passageiros são pessoas com hábitos, costumes e atitudes diferentes;
  • Considerando que as condições físicas, comorbidades e as necessidades fisiológicas variam onde há concentração de usuários;
  • Considerando que muito tempo sentado eleva o risco de problemas circulatórios ou até TVP (trombose venosa profunda) e de desconforto abdominal (por reter urina e fezes);
  • Considerando o risco de infecção caso o banheiro esteja contaminado, deve ser desinfectado periodicamente durante a viagem e lavar as mãos é mandatório;
  • Considerando que tanto a engenharia das estradas (curvas, aclives, buracos) quanto obstáculos que causem desaceleração rápida exigem todos os itens de segurança neste espaço;

“Recomenda-se a todas as empresas respeitar através de ações de prudência, higiene e prevenção, o intervalo de segurança ideal de intervalo do transporte terrestre situado entre 120 e 180 minutos, ou antes se solicitado, o que garantirá inclusive para o motorista o bem-estar físico e psíquico no trajeto, inserindo-se na definição de saúde da OMS Organização Mundial da Saúde.”

Apesar disso, a ANTT não considerou esses riscos. O exemplo clássico são as viagens Vai Direto, operadas na rota Rio de Janeiro – São Paulo e outras, pelo grupo JCA, dono de empresas como Viação 1001, Cometa, Catarinense, Expresso do Sul, dentre outras.

Quando o Estradas.com.br  solicitou o esquema operacional das linhas que unem as cidades mais importantes do país, a ANTT não apresentou nenhum que autorizasse a viagem sem parada entre Rio e São Paulo. Todos os esquemas enviados previam a parada.

Entretanto, a empresa 1001 iniciou a divulgação dessas viagens em dezembro de 2020 e continua fazendo isso todos os dias. Nem por isso, a Superintendência de Fiscalização da ANTT puniu a empresa com a suspensão do serviço, além de outras penalidades.

É importante lembrar que, aproximadamente em 2003, a mesma empresa iniciou operação irregular entre Rio e São Paulo, com as chamadas viagens Non Stop. A 1001 somente estava autorizada a realizar a linha Niterói – São Paulo com parada.

A operação irregular era anunciada na televisão e permitiu à empresa conquistar uma boa parcela do mercado, fragilizando a concorrência que perdeu mercado. Os motoristas na época denunciaram a prática ao Estradas.com.br, que levou ao conhecimento da ANTT.

A administração da época demorou quase dois anos e vários acidentes com vítimas para acabar com a prática. A situação parece se repetir, inclusive a justificativa é a mesma: “…os passageiros querem chegar antes”. Só esquecem de informar dos riscos que estão envolvidos para a saúde e segurança dos passageiros, quando são obrigados a andar no corredor para buscar água ou ir ao banheiro.

O Dr. Alysson Coimbra lembra que circular no corredor do ônibus para ir ao toalete, com o veículo em velocidades como 80 km/h, pode ocasionar quedas com traumatismo cranioencefálico, fraturas. Situação ainda mais grave no caso de idosos, pessoas com dificuldade de locomoção, gestantes.

Ele acrescenta ainda questões sanitárias. “O risco de doenças contagiosas e infecciosas nesse ambiente, com toaletes sendo usados em condições precárias, é muito grande, inclusive por pessoas que estejam usando chinelo ou sandália e que tenham algum ferimento aberto no pé.”

Alysson Coimbra enfatiza que “não existe nenhum momento em que seja seguro usar o banheiro de um ônibus em movimento, porque o trânsito é dinâmico. Basta uma frenagem, desvio ou manobra brusca do motorista para ocorrer uma queda de passageiro, com consequências graves.”

Assim como o dr. Musafir e dr. Coimbra, o dr. Marco Cantero, especialista em Medicina do Trabalho e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Aeroespacial, defende que os motoristas e passageiros tenham paradas a cada duas ou, no máximo, três horas de viagem.

O grande risco da trombose venosa profunda é a imobilidade. Quando você fica 6 horas sentado, com a perna para baixo, aumenta o risco para pessoas com predisposição, como fumantes, obesos, pessoas com varizes, mulheres que usam pílulas”, diz Cantero. Observa ainda que banheiro de ônibus é para situações de absoluta exceção, até por questões sanitárias, como também alertaram os demais médicos.

Quanto ao motorista, ele lembra que o ideal seria parar a cada duas horas, até pela responsabilidade da função. “Depois desse tempo, você vai perdendo a capacidade de concentração e o risco de acidente aumenta muito.”

Para Rodolfo Rizzotto, Coordenador do SOS Estradas, o que fica evidente é que as viagens sem parada atendem interesse comercial da empresa, que querem usar o mesmo veículo para mais viagens e não apresentam nenhum benefício para a segurança viária.

“Lógico que se você perguntar a qualquer passageiro se ele quer chegar antes vai dizer que sim. Entretanto, caso seja informado de todos os riscos envolvidos, vai pensar diferente. Infelizmente, o Poder Público parece mais focado no interesse das empresas que na segurança viária.”

Desde o ano passado, o Estradas.com.br vem alertando os usuários que ANTT e ARTESP seguem a mesma linha de raciocínio tolerando viagens longas sem parada.

Até 2022 estavam em vigor, há quase 20 anos, normas que determinavam que viagens acima de 170 km dentro do estado de São Paulo deveriam ter uma parada obrigatória.

Em junho de 2022 saiu nova Portaria que aumentou esta distância para 350 km. Quando consultada sobre o estudo que fundamentou esta mudança que mais dobrou o limite da viagem sem parada, a ARTESP não apresentou nada.

Certamente por coincidência, nas linhas paulistas operam empresas do mesmo grupo que promove as viagens Vai Direto nas linhas federais. Esse tipo de viagem já foi objeto de investigações do Ministério Público de São Paulo em 2007.

“A investigação do Ministério Público em São Paulo começou após colisão entre dois ônibus da mesma empresa, com 32 mortes no local. Durante anos alertamos as autoridades das várias medidas que colocavam em risco a vida dos motoristas e passageiros. Investigamos sinistros (acidentes), revelamos as causas e nem assim mudavam a postura. Ficou claro que o Poder Público no setor de transporte rodoviário de passageiros não aprende nem com as mortes, tanto que não sabem de fato quantos sinistros ocorreram , quantas pessoas perderam a vida, o que poderia ser feito para evitar tantas vítimas. Somente tomam providências quando investigados pelo MP ou denunciados pela imprensa. “, lamenta Rizzotto, do SOS Estradas.

Ele acrescenta que dentro de alguns dias a tragédia do ônibus de romeiros será esquecida, assim como já foi dos torcedores do Corinthians e tantas outras que ocorrem diariamente no Brasil.

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