Morador de Seropédica, Nei Lopes lança ‘Dicionário de História da África
16 de maio de 2017

Sambista, compositor e escritor prepara outros cinco livros e dois novos discos

Na tranquilidade do seu escritório, na casa onde vive, em Seropédica, na Baixada Fluminense, o escritor, pesquisador, compositor e cantor Nei Lopes, 75 anos recém-completados na terça-feira passada, mantém uma rotina que ele classifica como “doideira mansa”. Nesta segunda-feira, ele lança o “Dicionário de História da África — Séculos VII a XVI” (Autêntica), em parceria com José Rivair Macedo. Em setembro chega às livrarias seu novo livro de contos, “Nas águas da baía há muito tempo” (Record). E Nei tem dois romances engatilhados, dois discos encaminhados, um livro com as letras de suas canções em andamento e trabalha no próximo volume do dicionário sobre História da África, do século XVII em diante.

O ritmo pode parecer exagerado para um septuagenário, mas ele brinca que em Seropédica não tem o que fazer. Sem teatros ou cinemas, só sobra a TV. E, claro, o tempo e o sossego para ler e escrever, revisitar a própria obra e descobrir novidades. “Dicionário de História da África”, aliás, é uma consolidação das suas pesquisas sobre o continente e sua cultura, iniciada com “Bantos, malês e identidade negra”, de 1988, reeditado em 2006.

Comecei a fazer minhas pesquisas e a escrever livros porque havia e ainda há um desconhecimento muito grande em relação à história e à cultura africanas e afro-brasileiras. Estou trabalhando direto neste sentido porque isso me alimenta — afirma Nei. — Esse dicionário mostra o fundamento do continente. A África não era uma selva só, essa visão que Hollywood ajudou a moldar. Construir essa visão da África foi um projeto estudado. Aí nossos filhos e netos ficam com a autoestima no pé.

“MAS VOCÊ NÃO É SAMBISTA?!”

O dicionário registra desde formas de organização social até a formação de unidades políticas, que se desdobraram na criação de Estados e impérios, passando pelos embates entre o Islã, o cristianismo e as religiões tradicionais e as disputas em torno das rotas de comércio em direção ao Mar Mediterrâneo e ao Oceano Índico. Mais do que tudo, busca resgatar o protagonismo dos africanos na construção de sua própria História.

Nei é um crítico da abordagem da africanidade sempre do ponto de vista da escravidão. Ele lembra uma conversa com o historiador e professor Joel Rufino dos Santos, seu amigo, há muitos anos. Rufino contava a dificuldade de ensinar História da África para jovens negros. Afinal, a história dos negros só começa quando eles entram no navio negreiro, ignorando tudo que veio antes.

O Joel me disse: “O jovem se sente mal, não quer ouvir. Porque tudo é escravidão, escravidão”. Eu falei: “Pô, Joel, não tem um jeito de a gente subverter esse quadro, mudar essa abordagem?”. Chegamos à conclusão de que é preciso mostrar os grandes momentos da África antes de falar na escravidão. Este é o período (do século VII ao XVI) dos grandes impérios. A escravidão vem depois — explica.

O que mais Nei Lopes está preparando

Nei é um africanista autodidata. Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, não levou a carreira por muito tempo. Os escritórios foram trocados por quadras, quintais e terreiros. A partir de uma tragédia pessoal — a perda de um filho, em 1981 —, o pesquisador começou a se dedicar aos livros sobre o tema. Nos sebos do Centro, encontrou verdadeiras pérolas, como um dicionário de kicongo. O interesse por línguas, que vinha desde a adolescência, deitou raízes e rendeu frutos, como seu “Novo dicionário banto do Brasil”, de 2003.

— Tenho formação acadêmica restrita. Meu título é de bacharel em Direito e Ciências Sociais, mas de sociologia mesmo estudei pouco. Era mais voltado para advocacia. Sempre fui curioso em relação a essas coisas, devia ter estudado antropologia. Desde criança tinha essa tendência. Não consegui desenvolver isso academicamente, mas continuei estudando, aprendendo, e estou consolidando isso — conta.

Sambista e africanista, partideiro e escritor, o lugar de Nei Lopes pode parecer confuso. Ele lembra quando um sujeito o interpelou num restaurante de comida natural no Centro do Rio: “Mas você não é sambista?! Por que está comendo comida vegetariana?!”. Para ele, a situação insólita é uma metáfora da sua trajetória que entorta classificações simplificadoras. Na alquimia entre conhecimento adquirido e experiência pessoal, Nei vai construindo seu edifício literário.

— Os dicionários são minha tarefa política. Já a ficção, os romances e os contos, é curtição. Uma válvula de escape porque aborrece muito ficar lendo essas coisas (para os dicionários). Aí vou ficcionalizar, escrevendo a história do meu jeito. As pesquisas alimentam minha ficção, junto com minha vivência — diz.

TRAMAS DE TONS FANTÁSTICOS

Nos contos de “Nas águas da baía há muito tempo”, todas as histórias se passam ao redor da Baía de Guanabara e se conectam a partir de um episódio histórico, a Revolta da Armada. Em setembro de 1893, militares da Marinha sublevados contra o presidente Floriano Peixoto bombardearam os fortes do Exército. Personagens reais, como o escritor Lima Barreto e o músico e compositor Anacleto de Medeiros são ficcionalizados em tramas de tons fantásticos inspirados por Gabriel García Márquez e Alejo Carpentier.

O escritor, entretanto, não abandona a música. Ainda em fase de projeto, o disco “Rio à toa — A alma hilariante das ruas”, com direção musical de Afonso Machado, reúne 15 sambas sobre o cotidiano carioca. Já “Samba a rigor”, com produção do paulista Guga Stroeter, está gravado e dá uma roupagem orquestral a clássicos do pagode da década de 1980, com Nei assumindo o papel de crooner no disco. No meio do caminho entre os discos e os livros, está em gestação ainda o seu “Livro de letras”, projeto em parceria com o produtor Marcus Fernando. Afinal, quem seria capaz de dizer que os versos “Tenho impressa no meu rosto / e no peito no lado oposto ao direito/ uma saudade”, na abertura de “Samba do Irajá”, não são literatura, e das boas?

“DICIONÁRIO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA”

AUTORES: Nei Lopes e José Rivair Macedo. EDITORA: Autêntica. PÁGINAS: 320. PREÇO: R$ 59,80. LANÇAMENTO: Segunda, às 19h, na Livraria Blooks (2237-7974).

Por: Leonardo Cazes Do O Globo