Navio que afundou com ossos de 500 chineses gera polêmica 118 anos depois
7 de agosto de 2020

O naufrágio de um velho navio que transportava os corpos exumados de 499 trabalhadores chineses que morreram há 118 anos está no centro de uma tensa polêmica na Nova Zelândia.

De um lado da questão está o cineasta neozelandês John Albert, que filmou os escombros do navio no fundo do mar da ilha norte da Nova Zelândia para um documentário que será lançado no início do ano que vem.

Do outro, alguns descendentes dos chineses cujas ossadas estavam sendo transportadas naquele navio, o SS Ventnor, quando ele afundou, em 28 de outubro de 1902, logo após partir da Nova Zelândia com destino à China.

“O motivo da pendenga é a alegada profanação do local onde descansam aquelas almas pelas filmagens, embora elas não mostrem as ossadas dos únicos “passageiros” do SS Ventnor – que, por sua macabra carga, passou a ser conhecido como o “Navio dos Caixões”.

O benfeitor morreu também.

A repatriação dos corpos exumados, todos mortos nas minas neozelandesas no final do século 19 e enterrados em cemitérios locais, fora promovida pelo empresário chinês Choie Sew Hoy então um bem-sucedido comerciante na Nova Zelândia, que fretou o SS Ventnor para aquela peculiar viagem.

Só que, ironicamente, o próprio Choie Sew Hoy morreu pouco antes de o navio partir, e o seu corpo foi incluído no macabro grupo, totalizando assim 500 caixões a bordo do SS Ventnor. E é justamente uma descendente de Choie Sew Hoy, a sua tataraneta Jenny Sew Hoy Agnew, que está encabeçando o movimento que pretende impedir que o documentário seja exibido.

“Os restos do navio têm que ser encarados como se fossem um cemitério, um local que não pode ser profanado”, defende a tataraneta da vítima mais famosa do naufrágio do navio. “Como você reagiria se alguém abrisse a tumba de seus parentes mortos para filmá-los?”.

Já o diretor do documentário se defende dizendo que não só não são mostrados ossos nem caixões nas filmagens, como o navio em questão faz parte da história da Nova Zelândia e, portanto, precisa ser mostrado.

Com isso, a polêmica sobre o documentário, que se chamará “A Última Viagem dos 499” ou “Fallen Leaves” (“Folhas Caídas”, em português), uma expressão que remete a tradição chinesa de retornar os mortos ao seus locais de sua origem, só tem aumentado.

Desaparecido por mais de 100 anos A tragédia do SS Ventnor, que além de fazer desaparecer no mar cinco centenas de cadáveres também matou 13 dos seus tripulantes, faz parte de um capítulo da história da Nova Zelândia que passou mais de 100 anos perdido no fundo do mar porque a localização dos restos do navio ficou desconhecida por mais de um século.

Até que, em 2012, um grupo de cineastas amadores, do qual Albert fez parte, encontrou os restos do SS Ventnor, a 150 metros de profundidade, e deu início as filmagens. E, junto com elas, começou a polêmica.

A questão é: os restos daqueles chineses devem ser respeitados e deixados em paz nas profundezas do mar ou são partes de uma história do país que deve ser trazida à tona?.

Na Nova Zelândia, as opiniões estão divididas.

A rigor, no entanto, a comunidade chinesa local é contra a exibição do documentário, que remete a um período também polêmico do desenvolvimento de toda a Oceania, quando a mão de obra vinda da China foi usada de maneira quase escrava.

Vítimas até de canibalismo No passado, outro episódio envolvendo 327 operários chineses que estavam a caminho das minas de ouro da Austrália acabou em barbárie, quando o barco que os transportava afundou e eles foram abandonados pela tripulação em uma ilha deserta, mais tarde atacada por canibais, que os devoraram. Só um chinês sobreviveu (clique aqui para conhecer esta macabra, porém real, história).

No caso do Navio dos Caixões, houve bem mais respeito pelos mortos chineses.

Tanto que as ossadas que apareceram nas praias da região nos dias subsequentes ao naufrágio foram recolhidas e reenterradas por nativos maoris em seus cemitérios, mesmo sem saberem de quem se tratava.

Já os caixões que fundaram junto com o navio acabaram ganhando um segundo sepultamento, no fundo do mar, o que, agora, os descendentes das vítimas tentam preservar.

“De certa forma, aqueles infelizes morreram duas vezes”, resumiu, recentemente, um jornal local, alimentando ainda mais a polêmica.

Fonte: UOL