Qual é a relação entre o vírus do HIV e as doenças psiquiátricas?
2 de dezembro de 2018

No dia 1º de dezembro se comemora o Dia Mundial da Luta Contra a AIDS. Pensando nisso, o artigo a seguir vai abordar algumas questões que envolvem a psiquiatria e a infecção pelo vírus HIV. Este texto foi escrito usando como base um artigo do ano passado publicado na ACS Chemical Neuroscience (The Psychiatric Impact of HIV) e um dos guidelines (Guideline Watch, 2006) disponíveis no site da American Psychiatric Association (APA).

Introdução

Há mais de 30 anos, quando se descobriu que o vírus HIV era a causa da doença AIDS, estudos relataram a presença do vírus no cérebro dos pacientes doentes. A ligação entre HIV/AIDS e complicações neurológicas foi então estabelecida, o termo “neuroaids” adotado depois. A “neuroaids” se compõe de um espectro de alterações cognitivas, também conhecidas como “transtornos cognitivos associados ao HIV” (“HAND” é a sigla em inglês). Contudo, nesses conceitos houve uma falha na hora de incorporar as comorbidades psiquiátricas da infecção. Contudo, nesses casos pode haver uma alta prevalência de abuso de substâncias, depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtornos do sono e quadros psicóticos. Apesar de essa população sofrer com um risco aumentado desses transtornos, muitas vezes os médicos falham em diagnosticar e tratar tais comorbidades. Essas não só contribuem para o prejuízo cognitivo do paciente,  como também constituem uma questão importante para a saúde pública.

Estudos têm revelado uma relação complexa entre a infeção por HIV, neuroinflamação e comorbidades neurológicas e psiquiátricas. Em alguns casos, por exemplo, a doença mental pode ser consequência direta da neuropatia da infecção. Porém, em outros casos, a doença mental pode se tornar fator de risco para contrair o vírus, complicando o curso da doença e a adesão ao tratamento.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 36,7 milhões de pessoas estavam infectadas em todo o mundo em 2015, e houve 2,1 milhões de novos casos no mesmo ano. Estudos epidemiológicos que avaliaram subgrupos desses pacientes encontraram taxas de sintomas psiquiátricos (incluindo abuso de substâncias, depressão, TEPT, transtornos do sono e psicose) cerca de 1,5 a 8 vezes maior do que na população geral ou em grupos demográficos semelhantes de pessoas não-infectadas. A prevalência, contudo, parece variar de acordo com os sujeitos da pesquisa e variantes demográficas, o tamanho da amostra, regiões geográficas, o ano de realização das pesquisas e a adesão ao tratamento antirretroviral (TARV).

Este, por sinal, é um ponto importante: em 2015, apenas 46% dos infectados no mundo tiveram acesso à TARV, apesar da cobertura do tratamento vir aumentando em 4-5%/ano. Embora o tratamento leve à supressão da replicação viral e aumente a expectativa de vida, ele ainda não é capaz de eliminar completamente os sintomas da “neuroAIDS”. Na verdade, o aumento da expectativa de vida e o maior acesso ao tratamento podem aumentar a prevalência de doenças mentais crônicas. Apesar da menor ocorrência de casos graves de demência associada ao HIV após o surgimento da TARV, houve aumento nas formas leves e moderadas de transtornos cognitivos associados ao HIV.

Por sinal, a presença de tais comorbidades pode piorar o desfecho dos pacientes. Estudos recentes sobre causas de admissão hospitalar em pacientes adultos mostraram que nos 5 continentes, 9% das internações são de causa psiquiátrica. Na europa esse número chega a 13%, sendo a causa mais frequente associada à infecção pelo HIV. Mesmo entre os pacientes soroconvertidos que não necessitem de internação, comorbidades psiquiátricas podem contribuir para um desfecho desfavorável e maiores taxas de mortalidade, secundárias a menor adesão ao tratamento. Na verdade, vários estudos encontraram que a melhor adesão ao tratamento psiquiátrico também melhora a adesão à TARV, ressaltando mais uma vez, a importância de seu diagnóstico.

Pacientes com HIV que apresentam alterações cognitivas e motoras podem se beneficiar de uma combinação precoce entre TARV e tratamentos adjuvantes para outros fatores fisiopatológicos que contribuam com o quadro.

Farmacologia e interações do HIV

É comum que haja interação entre a medicação psiquiátrica e a TARV. As interações são tão numerosas que o guideline da APA nem cita todas. A maior parte da farmacoterapia psiquiátrica é metabolizada no fígado por enzimas do complexo citocromo P450 (CYP), especialmente o subgrupo 3A4 e 2D6. Da classe dos antirretrovirais, os inibidores de protease tendem a apresentar maior risco de mudanças nos níveis da medicação, e isso é significativo nos pacientes portadores do vírus. Quando o guideline foi escrito, o Ritonavir era o mais potente da classe dos inibidores de protease, com grande impacto na inibição de 3A4 e em menor grau da 2D6. O enfuvirtide, um inibidor da fusão, não inibe o complexo enzimático da CYP, apesar de também causar impacto nos níveis séricos da medicação psiquiátrica. Já foi demonstrado que o efavirenz induz a CYP 3A4.

Outros componentes desse substrato podem diminuir as concentrações plasmáticas quando coadministrados com efavirenz. Em estudos in vitro, o efavirenz chega a inibir mais enzimas ainda, logo drogas metabolizadas por algumas delas podem levar a alterações dos níveis plasmáticos delas, o que faz-se necessário um ajuste de dose. Drogas que induzem a atividade da CYP 3A4 (ex: fenobarbital, rifampicina e rifabutina) aumentam o clearance do efavirenz, diminuindo suas concentrações séricas. Antirretrovirais que inibem ou induzem a CYP também podem alterar os níveis sanguíneos de metadona, o que resulta tanto em sintomas agudos de descontinuação quanto a uma dose excessiva em pacientes previamente estáveis e, causa, portanto, uma recaída no uso de opioides. Logo, o psiquiatra deve sempre revisar a lista de medicações do paciente e consultar bases atualizadas sobre interações medicamentosas.

Do ponto de vista dos efeitos colaterais, o manual ressalta a capacidade do efavirenz em provocar sintomas indesejados, como alterações do sono ou sintomas neurovestibulares transitórios. Porém, estes costumam ser de curta duração. Apesar da grande incidência desses efeitos, o efavirenz parece apresentar melhoras na qualidade de vida dos pacientes. Apesar de ser sugerida cautela em pacientes com problemas emocionais prévios. Um estudo relatado achou que sintomas neuropsiquiátricos leves e tolerados persistiram por até dois anos em alguns pacientes, mas que esses mantiveram uma boa qualidade de vida.

Abuso de substâncias

Várias evidências correlacionam a relação entre a infecção por HIV e certas doenças mentais, nas quais fatores neuroinflamatórios e relacionados ao estresse contribuem bastante. O abuso de substâncias exemplifica essa relação. Está bem documentado que o abuso de substâncias pode aumentar a probabilidade de exposição ao vírus (seja pelo uso de seringas compartilhadas ou por favorecer o comportamento sexual de risco). Talvez menos óbvios sejam achados recentes sugerindo que a infecção por HIV leve a um comportamento de busca por drogas e aumente as chances de recaída em pacientes em recuperação do abuso de substâncias.

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Essas modificações comportamentais nos pacientes infectados parecem estar relacionadas ao aumento de citocinas pró-inflamatórias e alterações nos circuitos de recompensa, que talvez ocorram por causa de produção residual de proteínas virais não-estruturais. Por exemplo, ratos transgênicos que expressam uma proteína Tat sobre um ácido fibrilar glial apresentam maior sensibilidade à recompensa com metanfetaminas e maiores níveis de serotonina e dopamina na área mesolímbica.

Depressão

Uma história igualmente complexa também existe entre depressão e HIV. A depressão é uma das comorbidades psiquiátricas mais comuns em pacientes soropositivos (até 50% dos casos). Ela parece também acelerar o curso e a progressão da doença em pacientes acometidos, além de piorar a não adesão ao tratamento e aumentar a mortalidade. Numerosas relações foram estabelecidas entre a neuroinflamação crônica, mudanças neuroendócrinas induzidas pelo estresse, sinalização da neurotransmissão aberrante e humor deprimido. Nos pacientes em questão, achados clínicos demonstram uma correlação positiva entre depressão e níveis aumentados de citocinas inflamatórias (como TNF-alfa, IL-1beta e IL-6) tanto de forma sistêmica, quanto no líquor. Modelos pré-clínicos têm corroborado estes achados e relacionado altos níveis das citocinas a alterações glutamatérgicas e nas vias monoaminérgicas nas regiões corticais e subcorticais do cérebro. Apesar disso, o transtorno continua subdiagnosticado e não tratado.

Tratamentos psicoterápicos e farmacológicos, contudo, já se mostraram eficazes. Nenhum antidepressivo tem merecido maior destaque, mas é importante ter atenção ao perfil de efeitos colaterais e interações medicamentosas. Segundo o manual da APA, mirtazapina, bupropiona (de liberação prolongada) e venlafaxina se demonstraram eficazes, pois apresentam menores perfis de interação farmacológica e teriam equivalência similar aos tricíclicos e inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS). No entanto, os ISRS também seriam eficazes, mais bem tolerados que os tricíclicos e são considerados seguros. A terapia cognitivo-comportamental (TCC), terapia psicodinâmica, terapia interpessoal, programas educacionais e técnicas para manejo do estresse também apresentam bons resultados. Farmacoterapia e psicoterapia isolados parecem ter resultados similares.

Transtorno Bipolar e Transtornos Psicóticos

Há uma forte associação entre psicose e transtornos do humor associados ao HIV. Um estudo retrospectivo teria achado que o uso de divalproato seria bem tolerado sem aumentar a carga viral. Outros estudos sugerem que o ácido valpróico até ajudaria a erradicar o vírus de células latentes. Em pacientes HIV positivo, torna-se mais necessário ainda monitorar a função sérica e os níveis séricos de ácido valproico. O transtorno bipolar parece estar relacionado à não-adesão ao tratamento. A psicose primária também pode ocorrer em soropositivos, assim como psicose secundária associada à infecção ou complicações cerebrais ou sistêmicas.

Alguns casos de transtornos psicóticos, associados ou não a sintomas de mania, foram relacionados ao uso de efavirenz e outros regimes antirretrovirais, uso de corticoides, antivirais (como interfeton-alfa e ganciclovir), antimicrobianos (ex: sulfadizina e dapsona) e buspirona. Há também o relato de um caso de coma reversível de paciente em uso de ritonavir associado à risperidona. Há agora maiores preocupações sobre as complicações metabólicas associadas ao uso de antipsicóticos de segunda geração (atípicos), apesar destes serem ainda melhor tolerados que os antipsicóticos típicos em pacientes com HIV.

Ansiedade e Transtorno de estresse pós-traumático

Prejuízos na regulação do humor associados ao vírus se estendem também aos sintomas ansiosos, como como evidenciado por um aumento na prevalência de transtornos ansiosos, incluindo transtorno de ansiedade generalizada e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A neurobiologia do TEPT inclui alterações no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e circuitos corticais relacionados à reatividade da amígdala. Atribuem-se tais alterações neuronais à persistência de memórias intrusivas, hiperexcitação e pesadelos.

Apesar de vários dados de modelos pré-clínicos terem demonstrado aumento prolongado de citocinas inflamatórias e hormônios relacionados ao estresse induzidos pela infecção do vírus HIV, ainda não está comprovado se essas alterações fisiológicas persistentes alteram a progressão do TEPT ou se requerem um tratamento distinto. Por exemplo, inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) que costumam ser parcialmente eficazes em pacientes com TEPT, também possuem propriedades anti-inflamatórias que podem tornar esta classe particularmente benéfica ao subgrupo de pacientes com HIV e TEPT.

Conclusão

Estas são apenas algumas das condições psiquiátricas mais comumente relacionadas ao HIV. Elas representam uma dificuldade para os cuidados em saúde que precisa ser reconhecida e despertar maior atenção de médicos e pesquisadores. Apesar de estar claro que doenças mentais representam tanto um fator de risco para contrair o vírus, como manifestações de sua infecção, muito do seu mecanismo de interação precisa ser esclarecido. Reconhecer a importância dessa relação e realizar estudos sobre este assunto pode melhorar o cuidado oferecido aos pacientes infectados e compreender melhor a fisiopatologia da relação entre HIV e doenças psiquiátricas.

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Autor:

Paula Benevenuto Hartmann

Residente em Psiquiatria pela UFF ⦁ Graduação em Medicina pela UFF