“Juiz não é Deus”, mas “Você sabe com quem está falando”?
9 de novembro de 2014

Cena 1: Uma servidora do Detran-RJ, numa blitz (em 2011), parou um veículo que estava sem placa. A nota fiscal que portava já tinha prazo vencido. O motorista, ademais, não portava a carteira de habilitação (tudo isso foi reconhecido em sentença da Justiça). Quem era o motorista? Um juiz de direito. A servidora (que fez uma dissertação de mestrado sobre ética na administração pública) disse que o carro irregular deveria ser rebocado. Essa providência absolutamente legal (válida para todos) foi a causa do quid pro quo armado. Ele queria que um tenente a prendesse. Este se recusou a fazer isso. Chegaram os PMs (tentaram algemá-la). A servidora disse: “Ele não é Deus”. O juiz começou a gritar e deu voz de prisão, dizendo que ela era “abusada” (quem anda com carro irregular, não, não é abusado). Ela processou o juiz por prisão ilegal. O TJ do RJ entendeu (corporativamente) que foi a servidora que praticou ilegalidade e abuso (dizendo que “juiz não é Deus”). Alegação completar da servidora: “Se eu levo os carros dos mais humildes, por que não vou levar os dos mais abastados?; Posso me prejudicar porque fiz meu trabalho direito”.

Cena 2: O TJ do RJ condenou a servidora a pagar R$ 5 mil por danos morais ao juiz “ofendido” em sua honra (a servidora agiu mesmo sabendo da relevância da função pública por ele exercida). Diz ainda a sentença (acórdão): “Dessa maneira, em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa”. “Além disso, o fato de o recorrido se identificar como Juiz de Direito não caracteriza a chamada “carteirada”, conforme alega a apelante.” Uma “vaquinha” na internet já arrecadou mais de R$ 11 mil (a servidora diz que dará o dinheiro sobrante para entidades de caridade). Ela foi condenada porque disse que “juiz não é Deus” (ou seja: negou ao juiz essa sua condição). Heresia! Isso significa ofensa e deboche (disse o TJRJ). O CNJ vai reabrir o caso e apurar a conduta do juiz. Em outra ocasião a mulher de um “dono do tráfico” no morro também já havia dito para a servidora “Você sabe com quem está falando?”.

01. Construímos no Brasil uma sociedade hierarquizada e arcaica, majoritariamente conservadora (que aqui se manifesta em regra de forma extremamente nefasta, posto que dominada por crenças e valores equivocados), que se julga (em geral) no direito de desfrutar de alguns privilégios, incluindo-se o de não ser igual perante as leis (nessa suposta “superioridade” racial ou socioeconômica também vem incluída a impunidade, que sempre levou um forte setor das elites à construção de uma organização criminosa formada por uma troika maligna composta de políticos e outros agentes públicos + agentes econômicos + agentes financeiros, unidos em parceria público-privada para a pilhagem do patrimônio do Estado – PPP/PPE). Continuamos (em pleno século XXI) a ser o país atrasado do “Você sabe com quem está falando?” (como bem explica DaMatta, em várias de suas obras). Os da camada “de cima” (na nossa organização social) se julgam no direito (privilégio) de humilhar e desconsiderar as leis assim como os “de baixo”. Se alguém questiona essa estrutura, vem o corporativismo e retroalimenta a chaga arcaica. De onde vem essa canhestra forma de organização social? Por que somos o que somos?

02. Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra (disse Sérgio B. De Holanda, Raízes do Brasil) porque aqui se implantou uma bestial organização social hierarquizada (desigual), que veio de outro clima e de outras paragens, carregada de preconceitos, vícios, privilégios e agudo parasitismo (veja Manoel Bomfim). Esse modelo de sociedade foi feito para o desfrute de poucos (do 1% mais favorecido). Poucos eram os colonos nestas inóspitas bandas que podiam receber um título de cavaleiro ou de fidalguia ou de nobreza. Contra essa possibilidade de ascensão os portugueses invocavam dois tipos de impedimentos (que não alcançavam os brancos católicos, evidentemente): (a) o defeito de sangue (sangue infecto dos judeus, mouros, negros, índios ou asiáticos); (b) o defeito mecânico (mãos infectas dos que faziam trabalhos manuais ou cujos ancestrais tivessem praticado esse tipo de trabalho). Nem mesmo os leais ao monarca podiam galgar os privilégios e as graças da monarquia (ou seja: subir na mobilidade social), caso apresentassem um desses defeitos, que depois foram ampliados para abarcar os pobres, as mulheres, as crianças, os portadores de deficiência física, os não proprietários, os não escolarizados etc.

03. Ocorre que no tempo da colônia brasileira (1500-1821) e do Império (1822-1888) pouquíssimas pessoas não estavam contaminadas por uma das duas máculas matrizes. Quais foram, então, as saídas para se ampliar aqui também uma organização social dividida em classes? Ronald Raminelli (em Raízes da impunidade) explica: a primeira foi o rei perdoar os defeitos e quebrar a regra para conceder títulos e honrarias aos nativos guerreiros que defenderam Portugal, sobretudo na guerra com os holandeses (é o caso de Bento Maciel Parente, filho bastardo de um governador do Maranhão, do chefe indígena Felipe Camarão, do negro Henrique Dias etc.); a segunda foi que aqui, apesar do defeito de sangue ou mecânico, foram se formando novas oligarquias (burguesias), que acumularam riquezas e se tornaram potentes com suas terras, seus engenhos, plantações, quantidade de escravos, vendas externas, exércitos particulares etc. Surge aqui o conceito de “nobreza da terra” (que não podia ser excluída das camadas superiores).

04. Ao longo dos anos, como se vê, o tratamento dado às várias camadas sociais foi se amoldando ao nosso tropicalismo (foram se abrasileirando). A verdade, no entanto, é que nem sequer em Portugal nunca foi cristalinamente rígida a separação das classes sociais. Lá nunca houve uma aristocracia hermeticamente fechada (veja S. B. De Holanda). Praticamente todas as profissões contavam com homens fidalgos – filhos-de-algo, salvo se viviam de trabalhos mecânicos (manuais). O princípio da hierarquia, então, entre nós, nunca foi rigoroso e inflexível; nem poderia ser diferente porque aqui se deu uma generalizada mestiçagem (casamentos de portugueses com índias ou com negras), embora fosse isso duramente criticado pelos pseudo-intelectuais racistas, sendo disso Gobineau um patético e psicopático exemplo, que previam o fim do povo brasileiro em apenas dois séculos, justamente em virtude dessa miscigenação das raças (que afetava o crânio das pessoas, na medida em que o crânio tinha tudo a ver com o líquido seminal).

05. As elites que foram se formando (as oligarquias colonialistas) passaram a ser conhecidas como “nobreza da terra” e foram ocupando os postos de destaque na administração, nos cargos militares, na Justiça (juízes e promotores), na esfera fiscal, no controle dos recursos públicos etc. Quando Portugal passava pelos constantes apertos econômicos, os títulos da nobreza eram comprados pelos barões, duques, condes e marqueses. Foram essas as primeiras oligarquias que dominaram a população nativa (poucos brancos e muitos mestiços, índios, pretos alforriados e escravos), mandando e desmandando, com seus caprichos, arbitrariedades e privilégios, destacando-se o da quase absoluta impunidade pelos crimes praticados. Do ponto de vista do controle social, a colônia foi um grande campo de concentração (subordinado aos caprichos do mandante). Os militares sempre constituíram uma classe privilegiada, acima das leis do rei; contrariavam as leis e eram tolerados pelo seu poder e pelas suas armas, assim como pela capacidade de liderar tropas e defender os interesses da monarquia. Ainda hoje contam com uma Justiça especial, um foro especial, distinto dos demais criminosos. Outro exemplo de privilégio é o foro especial para os altos cargos da nação assim como a prisão especial (cautelar) para aqueles que possuem curso superior.

06. “Num ambiente em que todos sempre foram desiguais perante a lei, a desigualdade não é problema. É tradição” (R. Raminelli). No Brasil, portanto, todos (tradicionalmente) lutam por privilégios (não por igualdades de oportunidades ou mesmo igualdade perante a lei). O que nos compraz é o privilégio, não a igualdade. Triste país o que está tão perto dos caprichos e dos personalismos, dos desmandos, da ausência do império generalizado da lei, dos privilégios, das imunidades de classe (impunidade, v. G.) e tão longe da igualdade de oportunidades assim como da igualdade perante as leis. Temos muita dificuldade de lidar com as normas gerais (no trânsito, por exemplo) porque (os elitizados, os das camadas de cima) são criados em casas (e escolas) onde, desde a mais tenra idade, se aprende (educação se aprende em casa!) que há sempre um modo de satisfazer nossas vontades e desejos (e caprichos), mesmo quando isso vá de encontro com as normas do bom-senso e da coletividade (DaMatta, O que faz o brasil, Brasil?.

07. O dilema brasileiro (segue o autor citado) reside no conflito entre a observância das leis gerais e o “jeitinho” que se pode encontrar para burlá-las em razão das relações pessoais. Nós não admitimos (em geral) ser tratados como a generalidade, sim, queremos sempre o atalho, o desvio, o respeito incondicional à nossa “superioridade natural”. O indivíduo que deve obedecer as leis gerais não é a mesma pessoa (distinguida) que conta com relações sociais e privilégios “naturais” (que não poderiam ser contestados). O coração do brasileiro elitizado, hierarquicamente “superior”, balança entre esses dois polos (DaMatta). No meio deles está a malandragem, a corrupção, o jeitinho, os privilégios, as mordomias e, evidentemente, o “Você sabe com quem está falando?”. Claro que a lei, com essa mediação social, fica desprestigiada, desmoralizada. Mas ela é insensível e todos que pisam na sua santa generalidade e igualdade (um dos mitos com os quais os operadores jurídicos normativistas trabalham) ficam numa boa e a vida (depois do desmando, do capricho, da corrupção, do vilipêndio, do crime impune, do jeitinho, da malandragem) volta ao seu normal (DaMatta).

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