Aranhas papa-moscas. Para que te quero?
4 de fevereiro de 2023

Diante do universo das aranhas, que consiste em mais de 50 mil espécies registradas (menos de 1,5% considerada de importância médica), a família Salticidae Blackwall, 1841 se destaca em termos de diversidade. As aranhas papa-moscas, assim conhecidas popularmente, chamam a atenção tanto pelo seu número de espécies descritas (mais de seis mil) como também pelas suas variações de comportamentos e colorações.

Como é possível, então, reconhecer quem é uma aranha papa-moscas e não uma outra qualquer diante das 117 famílias de aranhas existentes? Já sabemos, pelo escritor americano Edgar Poe, que “Os olhos são as janelas para alma”. Diante desse versículo, podemos tomar nota que as aranhas papa-moscas são reconhecidas pelos seus oito olhos, porém com os anteriores médios maiores.

Dentre das mudanças evolutivas que ocorreram nessas aranhas, uma delas foi a capacidade de também captar ondas de cor através destes olhos especializados. Em conjunto com a habilidade de saltar sob suas presas, a garantia de uma boa presa é compensada! Leia o seguinte trecho, embasado para o título:

“Aranhas papa-moscas para que te quero:

te quero dormindo,
que prede mosquitos,
que fazem zumbidos,
que cercam meus ouvidos.
Obrigada papa-moscas, picadas zero!”
Autora: Marta, K. S.

Uma aranha papa-moscas se alimentando de um suculento mosquito – Foto: Husni Che Ngah

Querer as aranhas por perto pode parecer cômico até certo ponto, mas agora vou contar-lhe o porquê de querê-las bem. As aranhas papa-moscas podem servir como controladores biológicos ao se alimentarem de insetos que podem causar alguma zoonose no meio urbano. Vale o ressalte que essas aranhas não oferecem qualquer risco à saúde dos seres humanos. Pelo contrário, oferecem serviços ecossistêmicos, bem como a predação de insetos, principalmente moscas e mosquitos, em meio urbano.

Controladores biológicos naturais e topo de cadeia, uma aranha papa-moscas predando um mosquito – Foto: Rafael Mirante

Já para o meio rural, essas aranhas podem ter alguma preferência por se alimentarem de larvas de mariposas e outros insetos fitófagos, que muitas vezes são considerados pragas agrícolas por dizimarem hectares de plantações.

Você sabia que os machos de papa-moscas são menores que as fêmeas (sim, aranhas têm dois tipos de sexagem!) e que, também, eles quase sempre são coloridos, vistosos e realizam uma espécie de dança para atraírem parceiras? Além disto, machos também podem entrar em disputas e duelarem entre si para conquistar a fêmea e realizar a cópula. Além de dançar, duelar, muitas vezes esses machos podem virar presas fáceis de fêmeas, que se alimentam deles. Esse comportamento é conhecido como canibalismo.

Uma papa-moscas Australiana (Maratus speciosus, conhecida popularmente como aranha-pavão) – Foto: Jürgen Otto
5. Uma aranha papa-moscas canibal – Foto: Nicky Bay

Em termos reprodutivos, o estudo das genitálias (masculina: palpo, e feminina: epígino) de aranhas serve como um tipo de método para identificar e descrever espécies novas. Ilustrações de cada parte morfológica são feitas para compreender os padrões e variações morfológicos para cada espécie. Esse mecanismo funciona como se fosse uma “chave-fechadura”: cada espécie tem uma forma específica (sim, para as mais de 50 mil espécies – veja mais em World Spider Catalog). Quando uma taxonomista, aracnóloga, descobre uma espécie nova, o trabalho científico de descrição de espécie é meticuloso, cuidadoso e sério. Provém de diferentes métricas morfológicas, descrições, fotografias, ilustrações, distribuição geográfica (veja exemplo em Marta et al. 2022) e, em alguns casos, propostos através de uma filogenia (como essas espécies se relacionam e variam entre si, através de uma explicação evolutiva).

Representação do palpo masculino e alguns escleritos morfológicos que os compõem, caracterizando grupos e espécies (esquerda, A-E); Aspectos morfológicos que compõem o epígino em vista dorsal (direita, A-E); Arte: Kimberly da Silva Marta

A proposta de relação monofilética (ancestral em comum) em Salticidae foi proposta principalmente por dados moleculares (DNA). O grupo está subdividido em sete subfamílias, sendo Salticinae a mais rica em termos de espécies (93%) (Maddison 2015).

Dois grandes grupos diferem-se entre si através da análise filogenética: os Amycoida (reconhecidos por uma volta do espermóforo no palpo masculino) e os Salticoida (reconhecidos pelas fêmeas não possuírem uma unha no palpo feminino). Salticoida possui muitas tribos e subtribos, entretanto, com distribuição Neotropical e Andina, a tribo Aelurillina chama atenção, principalmente pela sua coloração, por associações do tipo mimética com formigas feiticeiras (vespas da família Mutiliidae) e por ainda não se ter conhecimento acerca de como é a morfologia dessas aranhas papa-moscas e nem como elas se relacionam entre si. A tribo é composta por três subtribos: Aelurillini, Thirastoscirtina e Freyina.

 

A Freyina possui distribuição para a América Latina e pode ser identificada pela presença de uma macrosetae distal-subproximal na tíbia da perna I. Atualmente, Freyina Edwards, 2015 engloba 32 gêneros, sendo que o Tullgrenella Mello-Leitão, 1941 agrupa 15 espécies atualmente descritas (várias dessas com apenas um dos sexos conhecidos), ocorrentes no sul da América do Sul e nunca antes testado filogeneticamente em análises prévias para a família e com dignoses precárias, com pelo menos 30 anos sem atualizações (Galiano 1963, 1970, 1981).

Tullgrenella pode ser reconhecida pelas seguintes características morfológicas: palpos dos machos com tégulo subdividido (TDD e TBD), êmbolo acompanhado por três escleritos (TmA, PP, C) e epíginos das fêmeas monoplanar, com dutos copulatórios enovelados em duas ou três voltas (Edwards 2015).

Um macho da espécie Tullgrenella serrana – Foto: Damián Hagopián

Esse gênero vem sendo cunho da minha pesquisa científica. Pretendo revisar as 15 espécies do gênero, descrever quatro espécies novas (nomes já escolhidos – tudum!), elucidar como essas espécies estão distribuídas nas regiões Neotropical e Andina e descobrir como relacionam-se entre si. Além disso, vou participar do 22º Congresso Internacional de Aracnologia, que ocorrerá em março no Uruguai.

Ajude a pesquisadora
Para conseguir dar conta de tudo isso, abri uma vaquinha on-line para ajudar com os custos e financiar, por exemplo, a apresentação da pesquisa e a divulgação científica.

Sou membra do coletivo Support Woman in Arachnology (SWA), que luta contra o viés de gênero e já descrevi duas espécies que receberam nomes em homenagem a mulheres (Guriurius nancyae Marta, Bustamante, Ruiz & Rodrigues, 2022 & Sumampattus verae Marta, Figueiredo & Rodrigues, 2021). Por sinal, uma delas foi a espécie de número 50 mil no mundo (Guriurius minuano Marta, Bustamante, Ruiz & Rodrigues, 2022), que homenageou um povo originário do sul da América do Sul chamado Minuanos.

Cultura, meio ambiente, consciência de classe, viés de gênero, popularização da Ciência e divulgação científica são cunhos da minha pesquisa de doutorado, além da paixão pelas aranhas papa-moscas. Para saber mais e colaborar, acesse https://apoia.se/eusouadonaaranha.

A cultura do medo de aranhas (aracnofobia) é recorrente na população. Entretanto, através da divulgação científica, o conhecimento e a popularização desses assuntos vêm trazem grandes benefícios, como saber que nem toda aranha é considerada de importância médica. É o caso da animação disponível no YouTube, da aranha papa-moscas: Lucas – A Aranha.

Lucas, a Aranha – Imagem: YouTube

Outro estudo recentemente popularizado foi a descoberta de que aranhas papa-moscas podem “sonhar”. Você agora deve estar se perguntando: como isso é possível? A pesquisadora alemã Daniela Roessler recentemente publicou um artigo demonstrando que aranhas papa-moscas, quando em repouso, sob um fio de seda e imóvel, apresentam espasmos nas pernas e movimento repetido das enervações dos olhos – movimento conhecido em sono REM (Roessler et al. 2022). Incrível, não!?

Mesmo diante do conhecimento de diversas curiosidades e da biodiversidade de aranhas papa-moscas, estudos que visam descobrir, conservar e comunicar a diversidade dessas aranhas ainda são escassos diante da dimensão do que ainda pode ser descoberto.

Uma aranha papa-moscas da espécie Evarcha arcuata, dormindo – Foto: Daniela Roessle

Referências
– Edwards, G. B. (2015). Freyinae, a major new subfamily of Neotropical jumping spiders (Araneae: Salticidae). Zootaxa 4036(1): 1-87. doi:10.11646/zootaxa.4036.1.1
– Galiano, M. E. (1963). Las especies americanas de arañas de la familia Salticidae descriptas por Eugène Simon: Redescripciones basadas en los ejemplares típicos. Physis, Revista de la Sociedad Argentina de Ciencias Naturales (C) 23: 273-470.
– Galiano, M. E. (1970). Revision del género Tullgrenella Mello-Leitão, 1941 (Araneae, Salticidae). Physis, Revista de la Sociedad Argentina de Ciencias Naturales (C) 29: 323-355.
– Galiano, M. E. (1981). Three new species of Salticidae (Araneae). Bulletin of the American Museum of Natural History 170: 216-218.
– Maddison, W. P. (2015). A phylogenetic classification of jumping spiders (Araneae: Salticidae). Journal of Arachnology 43(3): 231-292. doi:10.1636/arac-43-03-231-292.
– Marta, K. S., Figueiredo, C. P., & Rodrigues, E. N. L. (2021). A new species of Sumampattus Galiano, 1983 from Brazil (Araneae: Salticidae: Freyina). Studies on Neotropical Fauna and Environment, 1-10. https://doi.org/10.1080/01650521.2021.1984815.
– Marta, K. S., Bustamante, A. A., Ruiz, G. R. S., Teixeira, R. A., Hagopián, D., Brescovit, A. D., Valiati, V. H. & Rodrigues, E. N. L. (2022). A new huriine genus and notes on morphological characters (Araneae: Salticidae: Salticinae). Zootaxa 5124(4): 431-457. doi:10.11646/zootaxa.5124.4.2.
– Röessler, D. C., Kim, K., De Agrò, M., Jordan, A., Galizia, C. G., & Shamble, P. S. (2022). Regularly occurring bouts of retinal movements suggest an REM sleep–like state in jumping spiders. Proceedings of the National Academy of Sciences, 119(33), e2204754119. https://doi.org/10.1073/pnas.2204754119.
– World Spider Catalog (2023). World Spider Catalog. Version 24. Natural History Museum Bern, online at http://wsc.nmbe.ch, accessed on {30/01/2023}. doi: 10.24436/2.
– National Geographic 

Bióloga, mestra em Biologia Animal e doutoranda em Biologia pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia: Diversidade e Manejo de Vida Silvestre na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
invertebrados@faunanews.com.br

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